Allene Lage, Pós-Doutoranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (2016) e Pós-Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012).
A primeira vez que falei com Boaventura de Sousa Santos foi em agosto de 2000, através de um ousado e-mail em que, sem o conhecer, lhe escrevi a contar o meu desejo de o ter como meu orientador científico para um programa de doutoramento académico na Universidade de Coimbra. Um ano depois, cheguei a Coimbra com uma bolsa do governo brasileiro para fazer o doutoramento sob a sua orientação, que durou quatro anos. Em maio de 2006, realizou-se a apresentação/defesa da minha tese, um valioso trabalho de investigação sobre as lutas sociais no Brasil e em Portugal, intitulado Lutas por Inclusão nas Margens do Atlântico.
Desde então, tenho vindo a estudar e a acompanhar a produção intelectual de Boaventura de Sousa Santos, cuja principal caraterística é um modo de pensar distinto, que consegue tornar visível, explicar e analisar, sem subalternizar, os saberes e as práticas sociais produzidas no Sul global, no quadro de um novo paradigma científico, que inclui o social e o político.
Boaventura de Sousa Santos é um prestigiado cientista social que tem sido reconhecido internacionalmente, além de Portugal, em universidades do Brasil e de muitos outros países, por associações científicas, universidades e instituições públicas e privadas, através da atribuição de altos títulos académicos, prémios e distinções públicas. Entre outras distinções, recebeu mais de 20 doutoramentos honoris causa no Brasil e em vários países do mundo.
A obra de Boaventura de Sousa Santos, para além de adotar uma abordagem ampla e articulada da produção de conhecimento sobre várias dimensões da sociedade, é extensa e exige que o leitor académico entre na sua racionalidade sofisticada e inovadora, que devora os conceitos hegemónicos, ao mesmo tempo que propõe olhar o mundo com novas lentes e novas categorias. Assim, para compreender o pensamento teórico de Boaventura de Sousa Santos é necessário, antes de mais, estar disposto, com ele, a romper ou, pelo menos, a desconfiar de tudo o que é aparentemente seguro no domínio da ciência.
Nas décadas de 1980 e 1990, Boaventura de Sousa Santos debruçou-se sobre os temas da cidadania, da ciência, dos modos de produção do poder social, da análise da sociedade portuguesa e da globalização. Sobre estes dois últimos temas, desenvolveu projectos de investigação que reuniram dezenas de investigadores de seis países e resultaram na publicação de duas colecções, uma com 5 livros e outra com 8 livros. Os temas analisados neste período enquadram-se em várias dimensões, como ele próprio explica, como a epistemologia (Um Discurso sobre a Ciência, 1988 ou Introdução à Ciência Pós-Moderna, 1989) e um paradigma científico que é também um paradigma social, pois surge numa sociedade que é ela própria revolucionada pela ciência (Um Discurso sobre a Ciência, 1988). E a dimensão política e cultural (Alice's Hand: The Social and the Political in Postmodernity, 1994).
[Nos anos 2000,aprofundou as suas robustas reflexões com a publicação do premiado livro A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência (2000), que aborda a ciência, o direito e a política. Nos anos seguintes, publicou Gramática del tiempo (2006), Epistemología del Sur (2010), El fin del imperio cognitivo (2018) e o mais recente, El conocimiento nacido en la lucha: la construcción de las epistemologías del Sur (2024).
Noutras línguas, os livros recentemente publicados incluem: Law and the Epistemologies of the South. Cambridge: Cambridge University Press (2023), Postcolonialism, Decoloniality and Epistemologies of the South. Buenos Aires: CLACSO (2022), Tesis sobre la descolonización de la historia. Buenos Aires: CLACSO (2022), Conoscere per liberare. Roma: Castelvecchi (2021), Decolonising the University: The Challenge of Deep Cognitive Justice. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing (2021), Educación para otro mundo posible. Buenos Aires: CLACSO; CEDALC (2019), The End of the Cognitive Empire. The coming of age of Southern epistemologies. Durham e Londres: Duke University Press (2018).
Nesta linha, podemos afirmar que, ao longo do seu percurso académico e intelectual, Boaventura de Sousa Santos publicou mais de 150 livros no campo da sociologia, ou em diálogo com outras áreas do saber, em várias línguas e países, bem como centenas de artigos científicos, construindo um novo pensamento científico. O seu trabalho estende-se também ao campo da literatura, com uma produção poética de nove obras.
Boaventura de Sousa Santos, na sua vasta obra académica, criou vários conceitos teóricos que têm fundamentado estudos em diferentes áreas do conhecimento. Alguns desses conceitos teóricos são os seguintes:
A hermenêutica diatópica é um importante conceito da década de 1990. De acordo com Santos (1997), baseia-se na ideia de que todas as culturas são incompletas e podem, por isso, ser enriquecidas através do diálogo e do confronto com outras culturas. Segundo Santos, esta incompletude não é visível a partir do interior da cultura, uma vez que a aspiração à totalidade leva a tomar a parte pelo todo. Assim, subscreve que o objetivo da hermenêutica diatópica não é alcançar a completude - um objetivo inatingível - mas, pelo contrário, maximizar a consciência da incompletude mútua através de um diálogo que se realiza, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra. Conclui dizendo que é isso que o torna dia-tópico.
Epistemicídio é um termo utilizado por Boaventura de Sousa Santos desde o seu livro Pela Mão de Alice (1995). Epistemicídio é o processo de destruição criativa de conhecimentos, saberes e culturas não assimilados pela cultura branca/ocidental, promovido pela ciência moderna em defesa do seu estatuto privilegiado na essência.
A Sociologia das Ausências e a Emergência (2002) são dois conceitos vigorosos da obra de Boaventura de Sousa Santos, originalmente publicados num artigo em inglês. Nos seus termos, a Sociologia das Ausências (2002) procura demonstrar que o que não existe é, de facto, ativamente produzido como não existente, como alternativa não credível ao que existe. A questão da não-existência centra-se então numa invisibilidade produzida, num descrédito construído de forma a apontar para cenários sem alternativas. No centro deste quadro, a Sociologia das Ausências pretende transformar objectos impossíveis em possíveis e, a partir daí, transformar ausências em presenças. A Sociologia das Emergências (2002) consiste, como diz Boaventura de Sousa Santos, em efetuar uma expansão simbólica dos saberes, das práticas e dos agentes para neles identificar as tendências do futuro (o Ainda-não) sobre as quais é possível agir de modo a maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade de frustração. Nesta perspetiva, Santos define a sociologia das emergências como uma ação sobre as possibilidades (potencialidade) e as capacidades (potência). O Ainda-Não faz sentido (como possibilidade), mas não tem direção, pois pode terminar em esperança ou em desastre.
Outra perspetiva teórica desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos (2007) refere-se ao pensamento ocidental moderno, a que chama Pensamento Abissal, que, segundo ele, consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, em que as invisíveis sustentam as visíveis. Para Santos, as distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é de tal ordem que o “outro lado da linha” desaparece como realidade, torna-se inexistente e ocorre mesmo como inexistente. Assim, nos seus termos, Santos afirma que a caraterística fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela só há inexistência, invisibilidade e ausência não dialética.
Por fim, mas sem esgotar o potencial criativo e profundo da sua obra, temos Epistemologias do Sul (2010), um dos seus quadros teóricos mais divulgados. Segundo Boaventura de Sousa Santos, uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: aprender que o Sul existe; aprender a ir para o Sul; aprender do Sul e com o Sul. A sua reflexão sobre a epistemologia do Sul iniciou-se em 1995, quando propôs este conceito, e desde então tem vindo a aprofundá-lo com base na constatação de que o vasto campo de questões abrangidas pela reflexão filosófica ultrapassa em muito a racionalidade moderna, com as suas zonas de luz e de sombra, as suas forças e fraquezas. Nos últimos 20 anos, trabalhou extensivamente sobre este conceito em investigação tanto no Sul Global como na Europa, como o projeto “Alice, strange mirrors, unforeseen lessons” (2011-2016), financiado pelo Conselho Europeu de Investigação como investigador principal.
Esse sólido arcabouço teórico tem servido de referência em pesquisas científicas em programas de pós-graduação no Brasil e no exterior. A obra de Boaventura de Sousa Santos tem sido utilizada como quadro teórico consistente e adequado na produção científica de teses e dissertações realizadas no âmbito destes programas, nos seus cursos de mestrado e doutoramento, bem como para projectos de investigação financiados por instituições de financiamento nacionais e internacionais.
No Brasil, sua obra tem servido de base teórica para um número significativo de teses de mestrado e doutorado em várias universidades brasileiras.
[2]Num estudo da base de dados da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), recolhemos os seguintes dados.
Influência da produção teórica de Boaventura de Sousa Santos na produção científica da pós-graduação brasileira
Termos de busca | Número de menções no título | Número de menções nos campos título, autor, assunto e resumo | |
de tese | dissertação | ||
Boaventura de Sousa Santos | 02 | 09 | 650 |
Hermenêutica diatópica | 01 | 01 | 10 |
Sociologia das ausências | 01 | 04 | 704 |
Ecologia do conhecimento | 13 | 15 | 2.406 |
Epistemicidio | 02 | 05 | 125 |
Pensamento abissal ou linha abissal | 04 | 05 | 164 |
Epistemologias do Sul | 04 | 07 | 2.036 |
MONTANTES TOTAIS | 27 | 46 | 6.095 |
Fonte: Dados do IBICT, coletados em 06/Jun/2024(https://bdtd.ibict.br)
Isso demonstra a confiança de milhares de cientistas e pesquisadores brasileiros na qualidade científica do referencial teórico desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos. Esse número de mais de 6.000 teses e dissertações se desdobra em um número muito maior de artigos científicos apresentados em eventos científicos e publicados em periódicos no Brasil e em outros países.
Além disso, no âmbito dos programas de pós-graduação no Brasil, destaca-se o grande número de referências bibliográficas a Boaventura de Sousa Santos nas disciplinas ministradas por professores brasileiros de pós-graduação nas áreas de ciências sociais e humanas.
Referências bibliográficas
SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs). Saberes nacidos en la lucha: construyendo epistemologías del Sur. Coimbra: Edições 70, 2024.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento, 1989
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2019
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 63, outubro, p: 237 - 280. Coimbra: CES, 2002. Coimbra: CES, 2002.
SANTOS, Boaventura de Sousa. La mano de Alicia: lo social y lo político en la posmodernidad. Porto: Afrontamento, 1994
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1988
SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma conceção multicultural dos direitos humanos. In: Lua nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo , v. 39, p. 105-124, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009
[1] Prémio Jabuti em 2001. Este prémio brasileiro anual é o mais tradicional prémio literário do Brasil, atribuído pela Câmara Brasileira do Livro, criada em 1959.
[2] Lançado em 2002.
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