Da construção da verdade
- Antonio Sousa Ribeiro
- 28 de jan.
- 3 min de leitura
Se olharmos para casos como o de Boaventura de Sousa Santos, será muito difícil afirmar que tenha havido respeito por princípios elementares, como o da presunção de inocência.
O movimento #MeToo, com as amplas repercussões ou verdadeiras ondas de choque que suscitou, representou e representa um momento de charneira de relevância decisiva relativamente à defesa dos direitos das mulheres. Não apenas o levantamento do manto de silêncio que cobrira por demasiado tempo situações de abuso e de violência, mas também o contributo para dar visibilidade pública a essas situações e, do mesmo passo, para ampliar o próprio conceito de violência são passos determinantes. À luz, no entanto, da experiência entretanto acumulada, em particular da mais próxima de nós, algumas reflexões se impõem.
Com efeito, se é necessário defender com absoluta intransigência os direitos inalienáveis de quem afirma ter sofrido atos de violência, sejam eles quais forem, não é menos importante que essa defesa seja feita em total liberdade, no respeito pelos princípios que regem o Estado de direito e que regem qualquer sociedade democrática. Tais princípios incluem, desde logo, a garantia da presunção de inocência, as garantias do devido processo, do contraditório, da igualdade de armas, da transparência, da imparcialidade e da independência judicial.
Se olharmos para casos recentes com amplo eco mediático – à cabeça, o de Boaventura de Sousa Santos, de grande repercussão internacional, por se tratar do possivelmente único cientista social português de projeção mundial –, será muito difícil afirmar que tenha havido respeito por esses princípios, desde logo, o princípio elementar da presunção de inocência. São públicos os meandros deste caso, iniciado com a publicação numa coletânea da editora Routledge do capítulo “As paredes falaram quando mais ninguém se atrevia a falar”. A difusão, muito profissional, deste capítulo em muito larga escala num curtíssimo espaço de tempo suscitou o furor mediático que é conhecido e que abrangeu não apenas as pessoas diretamente visadas no texto, mas também o Centro de Estudos Sociais no seu todo, o que não encontra paralelo em nenhum caso análogo.
A singularidade deste processo tem como característica saliente o facto de, desde o início, a credibilidade das acusações formuladas ter sido erigida em princípio absoluto. Não se tratou, assim, de tomar o capítulo em si mesmo como objeto de escrutínio e de o sujeitar a contraditório, tanto quanto aos factos nele alegados como quanto ao método de análise, flagrantemente violador de princípios científicos básicos quanto ao que deve ser uma “autoetnografia” – circunstância que levou depois a editora Routledge a retirá-lo de circulação. Esta retirada, contudo, era irrelevante perante o mecanismo instalado de produção de “verdade”: uma vez consensualizada na opinião pública a convicção da total veracidade das alegações, tudo o que pudesse contestá-la – incluindo a decisão tomada por uma das mais prestigiadas editoras científicas do mundo anglo-saxónico – seria de imediato recodificado como mais um ato de violência. É esta a força da narrativa da vitimação: uma vez instaurada, tudo o que a contradiga, mesmo se articulado por testemunhos idóneos ou demonstrado por abundante documentação, se torna, no fundo, irrelevante. Até ao ponto de mesmo o recurso ao direito elementar da defesa em tribunal poder ser publicamente verberado como mais uma forma de agressão.
A quem se considera vítima de violência, assiste, evidentemente, o direito inalienável da denúncia, mas é perturbador verificar quais têm sido, por via de regra os caminhos dessa denúncia, evitando os canais institucionais e tudo apostando no campo da ressonância mediática. No caso vertente, vale lembrar que o CES dispunha e dispõe de um código de conduta suficientemente específico e de uma comissão de ética e uma provedoria às quais pode e deve ser denunciada qualquer violação desse código. O regulamento da provedoria, sublinhe-se, prevê a possibilidade de denúncia anónima, para possibilitar a quem se sinta inibido, por exemplo, por relações desiguais de poder, que não fique em silêncio. Nenhuma destas instâncias, foi, contudo, mobilizada, tal como não foram mobilizadas outras vias de queixa, nomeadamente no foro judicial. Em contrapartida, em particular desde a divulgação da “64 carta” do autodenominado “colectivo de vítimas”, foi abundante e omnipresente o recurso quer à imprensa escrita, quer aos meios televisivos, quer às redes sociais.
É bom de ver que a ausência de denúncias formais nas instâncias competentes priva quem é acusado de meios de defesa, uma vez que não tem acesso a quaisquer garantias processuais, tanto mais que todo o processo de formação de opinião se baseia na denegação sistemática do princípio fundamental da presunção de inocência. O que significa, em termos práticos, que, antes de qualquer culpa provada, os danos pessoais e profissionais se acumulam e, seja qual for o desfecho, são inapagáveis.
Vivemos num mundo de vítimas e o sofrimento real de qualquer ser humano, tantas vezes desconsiderado, impõe o imperativo de investigar até às últimas consequências todas as situações de abuso. Mas as formas de linchamento sumário ou a caricatura de justiça que representa a construção de uma narrativa entregue ao “tribunal” da praça pública não conduzem a esse objetivo, pelo contrário, terão, no médio ou no longo prazo, um inevitável efeito de descredibilização. Apenas a verdade pode servir a justiça e nunca a pós-verdade.
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António Sousa Ribeiro
Professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da UC; ex-director do Centro de Estudos Sociais
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